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quarta-feira, 4 de maio de 2016

O servo sofredor em Isaías 52.13-53.12



Introdução
Um estudioso alemão chamado Bernhard Duhm, em seu comentário do livro de Isaías publicado em 1892,1 identificou quatro cânticos em Isaías 40-55, que similarmente apresentam um personagem conhecido como “o Servo do Senhor”:

1º cântico: 42.1-7;
2º cântico: 49.1-9;
3º cântico: 50.4-9;
4º cântico: 52.13-53.12.

Certamente o quarto cântico (Is 52.13-53.12) é o mais conhecido para os cristãos. Isso porque este texto isaiano descreve o sofrimento, a morte e a exaltação do Servo de Javé, e o NT reconhecidamente identifica este Servo com o Messias prometido pelos profetas do AT (At 8.32-33; cf. Mt 8.17; Lc 22.37; 1Pe 2.24). Não é sem razão, pois, que o personagem apresentado no quarto cântico é comumente chamado de “Servo Sofredor”.

Porém, a questão da identificação do Servo de Javé tem sido bastante disputada entre os comentaristas de Isaías. Por essa razão, o presente artigo primeiramente apresentará as várias opiniões sobre a identidade do Servo, para depois analisar exegeticamente o quarto cântico do Servo. O objetivo deste artigo é mostrar que a leitura cristã não é fruto de uma exegese descuidada do texto isaiano. Na verdade, uma análise das palavras hebraicas deste quarto cântico revela que o texto de Isaías realmente apontava para o Gólgota e para o túmulo vazio.

Interpretações
A identificação do Servo do Senhor tem sido objeto de muito debate na pesquisa bíblica. Três interpretações podem ser destacadas:2

1ª - A interpretação coletiva. O servo seria Israel, como povo ou comunidade que sofrera o exílio babilônico (cf. 41.8-9; 49.3). Muitos intérpretes que aderem essa perspectiva creem que, nesse quarto cântico, o sofrimento do Servo-Israel é vigário; Israel teria se oferecido como sacrifício de expiação pelos pecados das nações. A identificação do Servo com Israel fundamenta-se principalmente em Isaías 49.3: “Tu és meu servo, és Israel.” O problema para esta interpretação é muito simples: em 49.5, o Servo nitidamente distinguiu-se de Israel.

Por isso, 49.3 não alude ao “Israel nacional, posto que no versículo 5 o Servo tem uma missão a Israel. O Servo Messiânico é o Israel ideal através de quem o Senhor será glorificado.”3  Além disto, de acordo com teologia dos profetas clássicos, os exílios sofridos por Israel (tribos do Norte) e Judá (Sul) foram resultado dos seus pecados contra a palavra de Javé (Os 8.13-14; Is 1.21-31; etc.). Dificilmente algum profeta diria que “Israel” apresentava a perfeição necessária e requerida à vítima do sacrifício expiatório. “Israel” não tinha condições para expiar a culpa das nações, porque ele mesmo era culpado e o seu pecado precisa ser expiado.

2ª - A interpretação individual.
Essa interpretação subdivide-se em pelo menos três ramificações: a) O servo seria um personagem escatológico-messiânico; b) O servo representaria algum personagem importante (Moisés, Joaquim, Jeremias ou Zorobabel); c) o servo seria o próprio profeta, o “Deutero-Isaías” (cf. 43.10; 44.26; 50.10; 59.21).

3ª - A interpretação complexiva que une a interpretação coletiva e a individual.
Segundo esta interpretação, houve uma evolução conceitual no Deutero-Isaías: teria passado da interpretação do Servo como Israel para a transferência do sofrimento e da morte vigária de um indivíduo (H. H. Rowley). Para outros intérpretes, o profeta teria associado as dores do Servo aos sofrimentos dos exilados na Babilônia, entretanto, mesmo fazendo essa associação, o quarto cântico anuncia que um personagem futuro reviveria a história trágica dos exilados; tratar-se-ia de uma figura escatológica a ser revelada no futuro do profeta.4

Atualmente a interpretação individual é a mais aceita entre os estudiosos. Citemos algumas evidências que apoiam-na:

1ª - No segundo e no terceiro cânticos o discurso está na primeira pessoa do singular. O Servo fala de suas dúvidas e crises interiores, tal qual Jeremias (Is 49.1-6; 50.4-9).

2ª - Em 42.1-7, o Servo refere-se a sua responsabilidade de pregador, e expõe a sua autocompreensão de profeta. Nessa linha de pensamento, muitos intérpretes identificam o Servo com o profeta Isaías.5  Richard E. Averbeck admite que, em dois dos cânticos, o profeta Isaías se identifica com o Servo (Is 49.1-6; 50.4-6), no entanto, no quarto cântico, o Servo distingue-se do profeta, e, no contexto de Isaías 40-66 (texto que o profeta Isaías, no século 8 a.C., visionariamente propõe restauração para os judeus exilados na Babilônia no século 6 a.C.), ele apresenta-se como Aquele que trará Israel à terra prometida.6

Para muitos estudiosos, o Servo seria uma alusão a Ciro, um tipo do Messias escatológico (cf. 42.5-7; 44.28; 45.1-7, 12-13). Em Isaías 44.28, Ciro é chamado de “ungido”, literalmente “messias”. No entanto, uma observação de Isaltino Gomes parece-nos pertinente: “A função do Servo extrapolaria a de recondução dos exilados. Teria uma dimensão soteriológica, isto é, com um significado de salvação. Ver o cumprimento desta dimensão em Ciro é, sem dúvida, fora de sentido. É restringir o texto no tempo, no espaço e na pessoa.” 7

É preciso reconhecer que, no livro de Isaías, o termo hebraico ‘ebed, “servo”, é aplicado a vários personagens:8 aos “servos do rei” (Is 37.5,24); àqueles que adoram a Javé (Is 22.20; 56.6; 63.17); aos profetas como porta-vozes de Deus (44.26); a Isaías (20.3); a Davi (37.35). Além disto, Israel também é apresentado como um servo através do qual o plano redentor de Javé é executado (Is 41.8-9; 43.10; 44.1, 2, 21; 45.4). Nos quatro cânticos do Servo (especialmente no quarto, que é objeto de análise do presente artigo), por sua vez, o termo ‘ebed não pode ser aplicado nem para algum personagem do AT nem para Israel.9  Na verdade, como o presente artigo demonstrará nas páginas subsequentes, o quarto cântico (Is 52.13-53.12) descreve o “Servo do Senhor” realizando uma obra que nenhum outro personagem do AT realizou.



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